Primavera por Cecília Meireles
Hoje,
na correria do dia a dia, na perca, mesmo que não intencional, de algumas
sensibilidades que tinha, não acompanho mais as trocas das estações.
Eu
costumava saber quando uma começava e a outra terminava, era gostoso tentar
identificar suas diferenças sutis e específicas, mas como diz a musica de
Cazuza - Poemas "... De repente, a gente vê que perdeu, Ou está
perdendo alguma coisa, Morna e ingênua que vai ficando no caminho"...
Acho que é assim que estou fazendo com coisas importantes, onde deveria fazer
com aquelas que não importam, mas isso são palavras para outra postagem rsrs.
E lendo
esse texto, acabei me lembrando de que preciso voltar a fazer essas coisas
pequenas, mas que tornam nossa existência mais bela, viva e gostosa, já que
somos seres emprestados neste grande e pequeno espaço chamado terra.
Contudo,
vou parar de devagar, pois o momento agora é da PRIMAVEIRA, e vamos a ela.
Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo
confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a
alegria de nascer, no espírito das flores.
Há bosques de rododendros que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa, como os
palácios de Jeipur. Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as árias
tradicionais de sua nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-se
pelos ares, — e certamente conversam: mas tão baixinho que não se entende.
Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno, quando as
amendoeiras inauguram suas flores, alegremente, e todos os olhos procuram pelo
céu o primeiro raio de sol.
Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas, as árvores cobertas de
folhas, — e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada
de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores,
e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz.
Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra
maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação.
Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão
a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo,
desta ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão outros, com outros
cantos e outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os ouvirem não terão nada
mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.
Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro
dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes
que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus
sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos;
e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra.
Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do
perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor.
Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por
fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a
primavera, dona da vida — e efêmera.
Texto extraído do livro "Cecília Meireles - Obra em Prosa - Volume 1", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1998, pág. 366.
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